domingo, 18 de maio de 2008

Primeiro Conto de Fantasia

Bom gente, eu estava querendo publicar este conto aqui somente depois que eu terminasse de escrever o do Tony. Porém, como não estou escrevendo o tanto que tinha planejado, decidi antecipar um pouco as coisas.
Então, enquanto eu termino o projeto Tony Trickman, vocês podem ler, na íntegra, o primeiro conto que eu escrevi. Se passa no bairro de Nitamu-ra, na cidade de Valkaria, em Arton, um mundo criado pelo Trio Tormenta, JM Trevisan, Marcelo Cassaro e Rogério Saladino.
Este conto era para ter sido publicado no site oficial da revista Dragon Slayer, mas infelizmente o mesmo nunca mais foi atualizado. Fazer o que né. Espero que gostem.

Xenofobia

Nitamu-ra, o grandioso bairro situado no subúrbio de Valkaria, vem precedido de uma grande tragédia. Originalmente localizado a léguas de distância do Reinado, há dez anos, seu antigo imperador dragão Tekametsu viu seu maravilhoso e místico reino ser atacado pela terrível tempestade rubra, que consumia tudo em que tocava.

Como um último esforço para salvar seu povo, o imperador transportou uma pequena área de sua cidade para os domínios de Valkaria, local onde já existia certa amizade. Hoje, Nitamu-ra ajuda sua hospedeira a crescer comercialmente e oferece ajuda também no campo de batalha. Mas o povo tamuraniano é enigmático, assim como sua cultura..

Os jovens sempre tratam forasteiros e vizinhos muito bem, mas algumas vezes é possível perceber certa exclusão e preconceito da parte dos orientais para com os ocidentais, principalmente por aqueles que viveram mais tempo em Tamu-ra. Talvez o medo causado pela Tormenta nunca tenha abandonado suas mentes, ou até mesmo por causa de algum motivo desconhecido. Não importa o que fosse esse povo exuberante nutre certo preconceito, ou preocupação, para com as outras etnias.

E essa desconfiança parece estar toda caindo sobre uma pessoa. Rayard Oncer, que foi obrigado a mudar para o bairro oriental para retribuir um favor à um amigo. Rayard, como vários outros habitantes do Reinado e de Arton, não é um humano. Especificamente, Oncer é um licantropo, um humano tocado por Tenebra, a deusa das Trevas e que recebeu dela um dom, habilidades bestiais, em conjunto a uma aparência feral.

Traços animalescos distinguem o rapaz no meio da multidão de olhos puxados. Suas compridas orelhas caninas e olhos redondos da cor da terra nunca o fizeram sentir vergonha em nenhum outro lugar que estivera, mas aqui, os olhares medrosos e severos fazem o pobre garoto se encolher em suas vestes, muitas vezes escondendo as garras afiadas como espadas dentro dos bolsos.

Se pudesse, o homem-besta deixaria o bairro sem pensar duas vezes, mas há um motivo muito importante para mantê-lo neste lugar aparentemente hostil. Um grande amigo, Keiharu, tamuraniano, por incrível que pareça, o salvara de um incêndio, e como agradecimento Rayard prometeu que um dia faria o mesmo, pagaria o débito salvando a vida do oriental. Desde então vem morando com seu salvador, já que nunca tivera um lar. Keiharu é um curandeiro, que aprendeu a usar ervas para fins cicatrizantes e anestésicos, porém já tem uma idade muito avançada, e seu tempo neste plano parece estar se esgotando, mas é muito feliz, pois viu em Oncer a oportunidade de manter seu conhecimento vivo, e sempre que pode passa o dia ensinando o amigo seus segredos medicinais.

-Ei Rayard, vá buscar água lá no poço para mim, por favor, preciso ferver essas plantas aqui e nossa água já acabou. - Gritou o velho, enquanto cortava em pequenos quadradinhos o talo de uma planta verde escura e mal cheirosa.

-Já vou, já vou! - Respondeu impaciente. “Por que é que eu que tenho de ir pegar água, será que ele não percebeu que os amigos dele não gostam de mim?” pensou melancólico enquanto calçava o tora, um chinelo de madeira, que deixava expostas suas grandes unhas dos pés. “Mas se eu tiver sorte posso encontrá-la novamente.” a tristeza em sua expressão deu lugar a um largo sorriso e uma fraca coloração vermelha em meio aos pelos da face.

Iwamori é o outro motivo pelo qual o licantropo ainda não abandonou sua promessa. Uma jovem oriental, de longos cabelos negros como a noite e lisos como o fluir dos rios, de pele muito branca e frágeis olhos escuros. Rayard a viu pela primeira vez quando fora buscar água na fonte que se encontra em uma pequena praça próxima a sua casa. Ela também repunha seu estoque naquele poço, e volte e meia era vista enchendo os baldes e carregando-os penosamente para sua residência.

“Hoje eu me ofereço para levar seus baldes!” Pensava sozinho, enquanto caminha pelas ruas, carregando o peso dos olhares preconceituosos em suas costas. “Mas ela também deve me odiar.”

Carregado pelos devaneios, chegou no local designado e segurando o balde pelo fundo e pela boca, passou-o pela água cristalina, depositando uma quantia considerável no recipiente. Quando se levantou para ir embora, seu coração pareceu pular para garganta, e seu estômago se contraiu de ansiedade. Lá estava ela, a personificação oriental da beleza. Iwamori vinha em sua direção, trazendo duas vasilhas vazias. O suor pintava seu rosto de paixão e desejo.

-Bom dia! - Disse a tamuraniana para a fera, com um sotaque muito forte e um sorriso, sincero aos olhos de Rayard. Aquilo o fez perder o chão, e por alguns segundos não foi capaz de dizer uma palavra sequer.

-B.. Bom dia. - finalmente a voz saiu, meio falhada e baixa. Sua face começou a esquentar devido ao rápido fluxo de sangue que a vergonha bombeou até ela. - Será que eu poderia carregar seus baldes para você? Para que não corra risco de se machucar.

-Quanta gentileza! Logo se percebe que é amigo do velho curandeiro, sempre muito prestativo. Se não for incomodo, eu adoraria que fizesse esse favor para mim. - As palavras também mal saiam, mais por dificuldade com a língua ocidental do que pela vergonha, mas mesmo assim, Oncer mal coube dentro de si. Mal a garota encheu suas vasilhas, o rapaz prontamente as agarrou e por pouco não derrubou todo o conteúdo no chão. Seus braços eram fortes como os de um minotauro e desajeitados como de uma criança.

“Ela não me odeia! E eu achando que minha sorte havia acabado”, este pensamento acompanhou-o até o fim do trajeto, junto com outros mais indiscretos, que insistiam em brotar em sua mente. Nenhum dos dois nada disse durante o trajeto. Todos os outros moradores olhavam descrentes para a menina que tinha coragem de andar perto daquela coisa, e parecia que Iwamori sentiu o mal-estar que afligia o homem-fera, pois durante o tempo que andara ao seu lado, baixou a cabeça e caminhou olhando para os próprios pés. Rayard em compensação se sentiu tão bem consigo mesmo, que cumprimentava a todos que encontrava na rua, mesmo não obtendo nem mesmo um aceno em resposta.

As construções dali eram como seu povo, exóticas e místicas. Grandes prédios de forma triangular preenchiam as redondezas, com estranhas estátuas e enfeitas nas sacadas e fachadas, e a residência da mulher não era diferente. Uma exuberante porta de madeira, com letras irreconhecíveis para Oncer, separava seu interior do resto da rua, e um pequeno jardim brilhava colorido junto a entrada, como um tapete colorido de boas vindas.

-Muito obrigado... hum... como é o seu nome senhor?

-Rayard, Rayard Oncer. - Disse orgulhoso, estufando o peito para frente, tentando passar a impressão de ser forte. Esforço desnecessário, pois a metros de distancia, mesmo estando encolhido, seus músculos se fazem perceptíveis.

-Prazer em conhecê-lo senhor Oncer. Eu me chamo Iwa...

-IWAMORI! - Berrou uma voz feminina do interior do recinto, propositalmente na língua dos ocidentais. - JÁ PARA DENTRO, ONDE JÁ SE VIU FICAR NA RUA SOZINHA COM UM... COM UM... UM HOMEM NA FRENTE DA CASA DE SEU PAI!?

-Desculpe-me senhor, preciso ir. – Apanhou as jarras e entrou como um vulto para dentro de casa, deixando o licantropo mudo e imóvel do outro lado da porta.

Rayard entrou assobiando e dançando em sua casa, fazendo o chinelo estalar no tapete de palha.

-A encontrou de novo garoto?

-Melhor que isso velhote. - Disse ajoelhando-se na outra extremidade da mesa. - Eu carreguei os baldes dela até sua casa!

-Hahaha! Eu sempre achei que você fosse um homem-lobo, e não homem-burro-de-carga.

-Boa tentativa, mas hoje nada pode me fazer perder o bom humor, velhote!

-Foi por isso então que você demorou. Sorte sua que não era grave o estado do senhor Makoto, senão o coitado já estaria sendo cremado agora.

-Desculpe-me. Mas ela me tratou tão bem. Completamente diferente dos outros. Tratou-me do mesmo jeito que o senhor me trata, tirando as brincadeiras sem graça.

-Hahaha! Não se iluda garoto, a cabeça do meu povo não muda tão facilmente. Confie em mim, eu sei do que estou falando. Eu mesmo tive dificuldades no começo quando te trouxe para cá. Fique sempre alerta, entendeu?

-Ta ta, pode deixar. - Mas estas palavras se perderam rapidamente nas lembranças do rapaz, dando lugar ao “bom dia” e ao “muito obrigado” transformou em paraíso o inferno que era morar naquele lugar.

Agora Rayard não precisava de nenhum motivo para visitar a fonte, o que começou a fazer várias vezes por dia, sempre na esperança de poder ver, e quem sabe trocar mais algumas palavras, com sua amada. Demorou cerca de um mês para que ela voltasse a buscar água naquele lugar. Segundo ela, que agora conversava sempre que podia com o licantropo, sua mãe havia ficado uma fera, (“ops, desculpe o comentário” disse envergonhada) e a proibira de sair, mas que agora já estava tudo bem, contanto que ela não voltasse mais a ver o homem-lobo.

-Mas então por que é que você vem falar comigo? Não tem medo de sua mãe ou seu pai?

-Tenho, tenho sim. Mas sua companhia me agrada. - Um sorriso surgiu na boca vermelha da oriental, e Oncer a imitou. - Não sei por que todos daqui não te tratam bem como tratam os elfos, ou os magos ou qualquer outro forasteiro. Você é tão gentil quanto eles, se não for mais.

-Hehe! – a boca de Rayard mal abria, e suas bochechas ardiam de vergonha – Mas você me trata bem, e o velhote, quer dizer, o Keiharu, também. Isso para mim já é o suficiente. - Baixou a cabeça e olhou para os joelhos, tentando esconder a vermelhidão da face.

Os dois estavam sentados na beira do poço, e Iwamori chegou um palmo mais perto do rapaz, encostando sua perna na dele. O coração do licantropo tornou a saltar para garganta, mas dessa vez parecia estar prestes a sair por sua boca, quando sentiu os dedos frágeis e sedosos da garota tocar-lha o queixo. Ela mirou a cabeça dele para cima novamente, e com um gesto lento e caloroso, tocou os lábios do rapaz com os seus próprios.

Quanto tempo aquele paraíso durou o homem-lobo não sabia, mas aquela sensação de bem estar, misturada com a surpresa e o rápido palpitar que os corações produziam em sincronia pareceu congelar o tempo. Nenhum dos gritos de surpresa vindos dos moradores que presenciaram a cena chegou até os ouvidos do rapaz, sua cabeça parecia desligada para todos os acontecimentos externos. Se Valkaria fosse atacada de uma hora para outra pela Tormenta, para ele estava tudo ótimo, naquele momento, nada mais importava.

Finalmente se separaram, sorte da garota, pois se o beijo durasse mais 1 segundo sequer, os instintos de Rayard tomariam conta de sua consciência, e sabe-se lá o que poderia ter acontecido. Ele mal conseguia conter as próprias mãos, e no momento em que elas estavam prontas para viajar pelo corpo sagrado de Iwamori, ela se afastou. Seu rosto muito vermelho apresentava as pequenas gotas de suor que tanto atraíam o licantropo.

-O que foi? Eu fiz algo de errado? - Oncer ficara confuso, mas a pressão em seu estômago e no baixo ventre não havia passado..

-Não, claro que não querido. A culpa é minha. Eu não podia ter feito isso na frente das outras pessoas, desculpe. - com estas palavras a garota se levantou rápido como uma flecha e correu em direção a sua casa.

Sozinho novamente, a fera levantou-se calmamente, ainda com a lembrança do toque suave e doce da moça que por alguns instantes, que pareceram a eternidade, se tornara um corpo e uma alma com ele. Caminhou distraído até a casa de seu amigo e mentor, ainda não prestando atenção às pessoas que lhe cercavam. Perdido nos desejos que invadiam sua mente quando recordava o beijo, chegou em casa.

-E ai garoto, a encontrou hoje? Garoto? - Rayard não respondeu, e foi direto para o banheiro tomar um banho, esquecendo até de se despir, devido ao turbilhão de pensamentos no seu cérebro. - O que será que aconteceu? Espero que não tenha se magoado.

Apenas na metade do banho Oncer percebeu que ainda estava vestido e, rindo de si mesmo, ficou nu e entrou na água novamente, agora cantando alguma música irreconhecível na sua voz, pelo menos isso deixara Keiharu tranqüilo. Somente depois de meia hora o homem-fera, ainda muito contente e cantante, se juntou ao velho curandeiro na sala.

-Por Lin-wu, ou qualquer outro deus que você cultue, pare de cantar! Tenha dó dos meus velhos e frágeis ouvidos.

-Ah velhote, hoje é um dia especial, e nem suas brincadeiras vão acabar com meu bom humor!

-Lá vem você de novo com esse papo. O que aconteceu para você ficar assim então, recebeu uma medalha de “Nitamuraniano do ano”?

-Hahaha! Melhor que isso seu velho sem graça. Hoje um dos meus mais profundos desejos foi atendido, talvez graças ao seu deus lagartão. Se for, agradeça a ele por mim.

-“Deus lagartão”, espero que você saiba o que está dizendo meu rapaz, para que não se arrependa quando for castigado. - Mas nem este aviso foi suficiente para remover o largo sorriso presente no rosto do garoto.

Já era noite quando os dois se sentaram para jantar, e o local estava fracamente iluminado pelas tímidas chamas das velas nas pontas dos candelabros. Toda comida que tocava os lábios de Rayard o faziam lembrar o gosto e a satisfação que sentira àquela tarde. Parecia uma noite perfeita, mas não era.

Um pouco antes de acabar seu prato, algumas batidas fracas, porém constantes, na porta, o fez largar um resto de comida para ir atender o convidado. “Quem será que esta fazendo uma visita nesse horário” pensou consigo mesmo esquecendo por um momento que o dono da casa é o curandeiro da região, e que as pessoas não marcam hora para se machucarem. E não deu outra, do lado de fora estava uma pessoa de aparência espantosa, machucados cobriam todo o resto e os braços, grandes manchas vermelhas se faziam visíveis ao longo da pele e das vestes.

-Iwamori!? O que aconteceu com você!? Entre por favor, já vou chamar o velhote, sente-se aqui venha. - O desespero conseguiu varrer as boas lembranças por alguns minutos da cabeça de Oncer, que parecia não saber o que fazer, como se tivesse visto o pior de todos os seus pesadelos bem a sua frente e sem poder contar com o despertar para ajudá-lo.

-B.. boa noite Rayard-san. Desculpe o incômodo, mas eu precisa vir ver o senhor Keiharu, eu não sinto direito meus braços. - disse a garota com uma expressão que, na cabeça dela, transmitia calma, mas serviu apenas para preocupar ainda mais o pobre homem-lobo.

-Não faça mais esforço tudo bem. Você não tem que se desculpar de nada, pelo contrario, fez muito bem em ter vindo aqui o mais depressa possível. EI SEU VELHO GAGÁ VEM AQUI DEPRESSA, NÃO PERCEBEU QUE O SENHOR TEM UMA PACIENTE!

-Para de gritar no ouvido da moça seu garoto mal educado. Não se preocupe, eu trouxe aqui o material para fazermos os curativos. - Keiharu depositou a bacia com água no chão, ao lado das gazes e algumas ervas.

-Boa noite Keiharu-sama, desculpe incomoda-lo tão tarde.

-Não se preocupe com isso, estou acostumado já. Venha cá, deixe-me limpar essas feridas.

Por algum tempo o velho limpou os machucados e passou uma mistura feita de ervas nas contusões, aliviando a dor e acelerando a cicatrização. Os braços e o pescoço da mulher ficaram cobertos de curativos, mas sua beleza ainda era incomensurável aos olhos da fera, que ficara o tempo todo ao lado do ancião, ajudando-lhe sempre que preciso.

-Tem mais algum lugar ferido ou que esteja doendo?

-Sim... mas, mas eu tenho vergonha. - A face da oriental ficara muito vermelha, a ponto de a mudança ser perceptível até mesmo com a baixa iluminação provinda das velas.

-Não precisa ter vergonha de mim querida, já sou muito velho e não ligo para esse tipo de coisa. - mentiu o curandeiro. O estômago de Rayard se contorcera de ciúmes por um instante.

-Minhas pernas... minhas pernas doem. Mas não estão machucadas.

-Entendo. Então apenas uma massagem relaxante com um pouco deste óleo de ervas será o sufi...

-Então deixa que eu faço velhote. Ta na hora de gente idosa ir dormir. Vai, vai, me da licença, eu sempre fui melhor massageador que você. Vai dormir vai.

Mesmo que a contragosto, Keiharu não se opôs ao garoto, levantou-se calmamente e caminhou devagar até seu quarto, olhando com o canto do olho para a garota, na esperança de vê-la retirando o kimono para receber seu tratamento. Mas foi em vão, ainda demorou alguns minutos para que ela se despisse, mesmo estando sozinha com Rayard.

-Não se preocupe, eu realmente sou bom nisso. - gabou-se dando um sorriso tranqüilo para a paciente. - Mas eu pedi que o velho saísse porque eu gostaria de te fazer algumas perguntas. Quem fez isso com você Iwamori?

-M... meu pai. - respondeu a garota depois de alguns segundos, com a voz muito fraca, quase inaudível.

-Foi por minha causa não foi? Por causa do nosso beijo de hoje, não é?

-Não foi culpa sua Rayard-san, fui eu quem tomou a iniciativa, eu já estava ciente das conseqüências, e não me arrependo, de que outra forma eu estaria aqui agora, a sós contigo?

Naquele momento, todo o desespero e arrependimento se esvaíram dos pensamentos do rapaz, dando lugar a incerteza e ao desejo. Sua mente estava confusa, por um lado não sabia se continuava a massagem e não fazia nada que comprometesse a saúde de sua amanda, e por outro, seus instintos insistiam para que ele se desfizesse de suas roupas também, e que se juntasse àquela perfeita criatura, mais bela até mesmo que a lua cheia refletida na margem calma de um lago negro salpicado de pequenas estrelas. Em poucos segundos os instintos ganharam, e naquela madrugada, nem o sono nem o velho curandeiro ousaram incomodar os dois.

O licantropo só conseguiu dormir quando Azgher iluminava vagarosamente o horizonte, e acordou do melhor sono de sua vida poucas horas depois, com barulho de vários passos e gritaria, vindos da porta de entrada. Iwamori não estava mais ao seu lado.

' -Rayard Oncer, abra a porta, é a guarda de Nitamu-ra. Vamos, abram a porta.

Não entendendo o motivo de tanta balburdia, o rapaz levantou-se desengonçadamente enquanto se vestia e calçava o tora. Ainda sonolento e com os olhos semi-cerrados abriu a porta, e deu de cara com 4 homens, vestidos com armaduras samurais, com máscaras horrendas escondendo suas faces. Iwamori estava ao lado de um deles.

-Que que foi? Qual o motivo dessa gritaria toda? - perguntou desconfiado.

-Você esta preso, Rayard Oncer, por macular Iwamori Ookuchi, prometida em casamento ao senhor Ichihira Kamioo, filho do Alto Sacerdote, Ichihira Tozen.

-QUE? - o licantropo acabara de descobrir que ainda não havia sonhado seu pior pesadelo, e que o mesmo acabara de se materializar na sua frente. - Prometida?

-Venha conosco, e não ofereça resistência, assim não sairá ferido.

Mas o acusado já não ouvia a voz do oficial, sua mente estava sendo bombardeada de pensamentos culposos, misturados com um crescente ódio que apertava seu peito para dentro. “Prometida, e não me disse nada. Como eu fui ingênuo, desde o começo o plano era esse, me prejudicar. COMO EU FUI BURRO!”

-Eu não vou. - disse estufando o peito, fazendo parecer aos olhos dos guardas que duplicara seu tamanho, fazendo dois deles darem um passo para trás. - Vou abandonar seu precioso vilarejo agora, não tenho motivos mais para permanecer aqui. - disse com ar zombeteiro, pedindo desculpas mentalmente para Keiharu, pois agora não pretendia esperar naquele lugar para cumprir sua promessa.

-Quem foi que te deu o direito de escolher o que fazer? - Ergueu a voz o que aprecia ser o líder dos samurais, trazendo de volta a confiança aos seus subordinados. - Tu cometeste um crime em nossos domínios, se aproveitando a força da senhorita Iwamori. Então...

-A força? Quem disse isso? - perguntou, sem esconder sua raiva, nem suas presas.

-A própria Iwamori deu queixa, e mostrou os machucados que você, em sua loucura, os fez.

Aquelas palavras fizeram Rayard perder o chão, descrente. Olhou nos olhos da antiga amada, que por usa vez, mirava o chão, com a face tão vermelha quanto na noite passada. Oncer não sabia o que fazer novamente. Pensamentos divergentes invadiram mais uma vez sua cabeça. E mais uma vez seus instintos falaram mais alto.

Com apenas um salto, Rayard foi capaz de acertar o comandante da operação, derrubando-o no chão já sem a metade esquerda da face, que estava agora destroçada dentro da boca do licantropo. Com a mandíbula e o pescoço sujos de sangue, se levantou, olhando furioso, bufando e rosnando para os outros três soldados, e para a garota, que se encolhera atrás da armadura de um dos oficiais.

As espadas ressoaram em uníssono de suas bainhas, porém, devido ao fato de seu capitão jazer imóvel aos seus pés, ninguém ousava tomar a iniciativa de atacar a fera. No mesmo instante, Oncer disparou em corrida pela rua, não antes de arrancar, literalmente, o braço de outro samurai que estava na sua frente. Uma fração de segundo depois, os dois guardas que sobraram iniciaram a perseguição.

Não demorou muito, o homem-lobo chegara à pequena fonte, o ponto inicial do plano para sua decadência. Ali, escorados na borda do posso, estavam mais quatro guardas, inicialmente a paisana, mas, ao verem o sangue que escorria da boca da fera, desembainharam suas espadas e posicionaram-se para um combate. Logo em seu encalço, vinham os outros dois executores, seguidos pela bela oriental.

No instante seguinte, os guardas cercaram o acusado por todos os lados, impossibilitando uma futura tentativa de fuga. A presa olhava em volta freneticamente, analisando todas as ações possíveis, e fugir já não era mais algo que ele queria, seu instinto pedia por sangue, e não adiante discutir com o instinto.

-Não se mexa. Não queremos que mais ninguém se machu... - com um pulo rápido para trás, o oficial escapou de ter sua garganta degolada pelo forte golpe de licantropo, que não estava nem um pouco a fim de conversa.

Percebendo que palavras já não resolveriam mais, dois dos guardas avançaram, com a espada em riste, na direção da fera, que com movimentos grosseiros, fortes rápidos, se desviou do primeiro golpe, rasgando o braço do espadachim, e levou o segundo apenas de raspão, fazendo uma fina linha de sangue escorrer através dos pelos de suas costas.

A investida deu confiança aos outros samurais, que atacaram praticamente ao mesmo tempo, tão rápidos quanto a presa, que, com muita dificuldade, saiu do meio da saraivada de lâminas, levando consigo uma perna entre os dentes, e mais alguns cortes nas costas e outros nos braços.

O número de oficiais fora reduzido a cinco, estando dois com os braços levemente cortados, e um outro com sangue escorrendo de seu supercílio direito, enquanto Rayard tinha apenas alguns cortes superficiais, que pareciam não estar fazendo a menor diferença. Não mais tão confiantes os guardas atacaram mais uma vez, alternando agora o número de combatentes, tática usada para fazer com que o inimigo gaste mais energia, ficando cansado mais rápido, enquanto eles guardam um pouco de suas próprias reservas de fôlego.

A nova investida pareceu surtir efeito, após esquivar-se dos três primeiros cortes, levando mais um samurai a invalidez, os outros dois não puderam ser totalmente evitados, fazendo com que as lâminas perfurassem fundo a carne do licantropo, que sentiu as pernas falharem por um segundo, e a visão se tornar levemente turva. Mas sua fúria era tão grande que ainda assim conseguiu lançar-se em direção aos atacantes. Após varias mordidas e fortes ataques desferidos com suas garras, que assobiavam ao vento devido a grande velocidade, só restara mais um samurai inteiro, porém, Rayard perdera a mão esquerda e havia vários cortes profundos agora, espalhados por todo o corpo, e a falta de sangue começara a surtir efeito.

Muito tonto devido aos ferimentos, Oncer ainda tentou uma última vez ferir seu último oponente, mas caíra de joelhos antes de dar o segundo passo, mas o guarda não se moveu. Não porque não quis, ele já mal se agüentava em pé vestindo sua armadura, que estava com o triplo do peso normal, e também despencou no chão.

Ainda ajoelhado, Rayard Oncer viu que Iwamori vinha correndo em sua direção, e seu ódio deu resquícios de que iria voltar, mas nem isso era mais possível agora, só lhe restou então, observar.

-Desculpe-me, tinha de ser assim.

-Iwamori – as palavras saiam em meio ao sangue em sua garganta. Juntou suas últimas forças para poder fazer a pergunta que latejava em sua cabeça desde que começou a morar com Keiharu, - por que eu? Com tanta gente de fora que passa por aqui, por que o ressentimento de vocês se concentrou em mim?

A garota fechou fortemente os olhos, fazendo com que grossas lágrimas escorressem pelos curativos de seu belo rosto, e apertou a mão que restara do licantropo contra seu peito. O garoto a olhava nos olhos, porém a imagem projetada em seu cérebro estava turva, como se Iwamori estivesse dentro de um rio com águas turvas. Por um segundo viu sua amada abrindo a boca, mas nunca chegou a ouvir a resposta de sua pergunta. Naquele mesmo instante, Rayard caíra nas graças de sua deusa criadora. Tenebra requisitara sua eterna presença em seu reino, e nunca mais o pobre licantropo precisaria sentir vergonha. Só havia uma coisa da qual Rayard se arrependeu antes de morrer, o dia em que chamou Lin-wu de lagartão.